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1 e 2 - Acho que a pergunta de por que devemos fazer isso suscita a segunda: com que objetivo? Então vou opinar sobre SE deveríamos desmilitarizar, pensando já na pergunta 2.
A nossa polícia militar surgiu por ocasião da transferência da família real portuguesa para o Brasil, que suscitou a necessidade de se organizar a guarda real integrada por oficiais que já se encontravam aqui. E as guardas reais (ou palacianas) são, por sua vez, destacamentos do exército regular (responsável pela defesa do território nacional) selecionados para garantir a defesa pessoal do soberano. Em tese, nós já contávamos com um destacamento dessa natureza desde muito antes da chegada da família real portuguesa, já que o Rio de Janeiro, que era capital desde o século XVIII, contava com a guarda pessoal do governador geral da colônia, que também foi, de alguma maneira, transferida para a função de guarda real do imperador.
Assim, a nossa polícia se desenvolveu como corpo militar auxiliar, ou seja: embora a sua função imediata fosse conter eventuais ataques (fronteira adentro) contra o imperador e, por extensão, contra toda a corte real — fossem estes ataques contra a vida ou de ordem econômica, isto é, contra a propriedade dessas castas — essas tropas também poderiam ser empregadas, junto ao exército regular, na defesa contra agressões externas, garantindo a segurança do território numa eventual guerra envolvendo o Brasil.
É interessante notar que durante todo o período imperial, essas polícias ainda eram chamadas de "guardas reais". Foi só com a proclamação da república que, claro, o termo "real" perdeu o sentido e essas tropas receberam a designação de polícias militares. Inclusive, em alguns países onde a tradição monárquica permaneceu, as polícias militares ainda são chamadas de polícias "reais". Caso da Austrália, por exemplo.
Durante a ditadura, os militares reorganizaram o corpo de polícia no país, uma vez que o crescimento desordenado das antigas guardas nas províncias havia provocado uma certa descentralização. Eles também extinguiram modalidades adicionais de polícia existentes (falarei disso em seguida) e ajustaram a doutrina e o treinamento policial às ambições do regime, reforçando o papel dos policiais militares no combate ao "inimigo interno".
Com essa reestruturação, a polícia militar foi (re)vinculada definitivamente à autoridade militar, sendo inclusive comandada por oficiais do exército. A redemocratização preservou muitas dessas mudanças instituídas durante a ditadura, desde o treinamento, a hierarquia e o julgamento por tribunais militares, até a sua função de contenção e combate ao "inimigo interno", que, com o fim da Guerra Fria e o desaparecimento da "ameaça comunista" e do criminoso político, se deslocou para a figura do criminoso comum, e ainda exerce uma influência muito forte sobre a doutrina e a mentalidade dos policiais militares até hoje.
O que nos leva para a questão 3: quais seriam os possíveis benefícios da desmilitarização?
Mas ainda não respondemos uma outra questão: onde fica a polícia civil nesse histórico relatado até aqui?
Bom, a polícia civil é oriunda da MESMA guarda real criada pela coroa portuguesa no começo do século XIX. Junto à guarda, foi criada a intendência de polícia real. Oficialmente, no entanto, só havia uma polícia acumulando funções militares e judiciárias. Só na década de 1860, durante o reinado de D. Pedro II, é que esses destacamentos foram divididos entre a guarda civil e militar.
A guarda civil foi regulamentada durante a república e organizada como polícia de carreira com função investigativa, dirigida por delegados e responsável pela operação dos inquéritos.
Quando, durante a ditadura, os militares intervieram na polícia militar, a guarda civil foi extinta e o Brasil passou a ter, novamente, apenas uma modalidade de polícia. A guarda civil só foi recriada com o fim da ditadura, na constituição de 1988, na forma de polícia civil, subordinada às autoridades estaduais.
Agora sim, vamos agora responder a todas as perguntas, terminando com a 4: como surgiu a ideia de desmilitarizar a PM, transformando-a numa modalidade adicional de polícia civil?
Em 2013, o Lindbergh, então deputado pelo PT, apresentou a PEC que desmilitariza as polícias, propondo que a instituição fosse unificada sob a função de polícia civil, subordinada à autoridade estadual, inclusive com a possibilidade de criação de polícias regionais e municipais, mais ou menos como funciona em países como os Estados Unidos.
Os argumentos apresentados, que dão conta dos objetivos e consequências previstas pela proposta, vão em duas direções: primeiro, em defesa dos direitos dos policiais enquanto funcionários públicos.
Os policias militares não gozam de direitos análogos aos civis. Eles são processados e julgados por autoridades militares, em vez de tribunais regulares; podem ser presos arbitrariamente, são proibidos de se manifestar contra as decisões institucionais das forças armadas etc. Além disso, sofrem uma defasagem enorme em relação aos direitos trabalhistas: o ingresso na PM não é garantido por concurso público, eles não tem plano de carreira, não podem organizar sindicatos. Até existem benefícios, mesmo que simbólicos, na filiação militar, mas a verdade é que para a grande maioria dos policiais, que ocupam patentes inferiores, esses benefícios não superam nem de longe os malefícios. O policial militar no Brasil é, via de regra, um trabalhador mal pago e mal treinado para uma função de stress e risco de vida permanentes.
A segunda direção aponta para os benefícios à sociedade civil.
Aqui no Brasil já houve experimentos que mostraram que as operações especiais de polícia civil são mais estritas, mais competentes no combate ao crime e matam menos do que as operações especiais de polícia militar. Em 2012, meses antes da apresentação da PEC da desmilitarização, o governo dinamarquês recomendou a desmilitarização da polícia no Brasil alegando que a unificação das polícias sob autoridades civis levam a menores índices de mortalidade policial e de execuções extrajudiciais pelos agentes, além de coibir abusos jurídicos e impunidades diversas que corroem a imagem e credibilidade das polícias junto à população.
Outro argumento apresentado na PEC e pelo levantamento do governo dinamarquês é que os custos de manutenção de polícias civis são expressivamente menores, e o orçamento poderia ser revertido em melhor treinamento, equipamento e principalmente investimento em inteligência, aumentando a efetividade no combate e desarticulação das operações criminosas.
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Finalmente, as questões que ficam para nós são:
Se a polícia militar e civil aqui no Brasil tem a mesma origem, e em alguns momentos as suas histórias se confundem e convergem; se as polícias mais violentas agem justamente em estados que acumulam contradições sociais agudas, como o Rio, São Paulo e Bahia; se, apesar da tendência observada por organizações sociais, a polícia civil não é garantia de polícia ordeira e menos letal, sobretudo contra uma parcela marginalizada da população, como mostra a realidade dos Estados Unidos... É preciso então se perguntar se essa proposta de desmilitarização, por si só, não tem sido reproduzida acriticamente pelas esquerdas como uma panaceia que, na realidade, não seria capaz de resolver nossos profundos problemas estruturais. Nós temos uma polícia desordenada, que mata muito, que tem ódio ao pobre, que é orientada contra a pobreza, principalmente porque vivemos na sociedade mais desigual e menos solidária do planeta. Pessoalmente, eu acho que seria interessante, até como experimento, e em benefício dos profissionais de segurança pública, que tivéssemos exclusivamente polícias civis. Mas, sinceramente? Isso não resolve o problema, e insistir nessa pauta é uma perda de tempo, porque em vez de tentar desenterrar mortos, poderíamos estar pensando em propostas mais arrojadas para garantir a segurança da população trabalhadora.
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